ALVARENGA PEIXOTO E BÁRBARA ELIODORA

Inácio José de Alvarenga (somente mais tarde passou a assinar Peixoto) nasceu no Rio de Janeiro em 1748. Fez um curso brilhante na Universidade de Coimbra e em 1768 foi licenciado e nomeado pelo Marquês de Pombal para o cargo de Juiz de Fora de Sintra (Portugal). Já homem de recursos e com prestígio nos meios literários, desenvolveu na Europa relacionamentos que lhe facilitariam a carreira, que prometia ser de sucesso. Com a morte do pai regressou ao Rio de Janeiro, onde liquidou seus negócios, aplicando sua fortuna em extensas áreas de terras minerais na região de Campanha, sul das Minas Gerais.

Em 1776 foi nomeado ouvidor da Comarca do Rio das Mortes, sediada na Vila de São João del-Rei, ocupando o cargo até 1780, quando se exonerou para dedicar-se aos seus negócios particulares.

Em São João del-Rei passou a freqüentar a residência do Dr. José da Silveira e Souza, cortejando sua filha mais velha, Bárbara Eliodora. É sabido que as filhas de Silveira se destacavam pela beleza, endoidavam os corações dos homens, e não primavam pelas virtudes inerentes ao sexto mandamento. Tarquínio J. B. de Oliveira, um dos comentaristas dos Autos de Devassa da Inconfidência Mineiro. escreveu: "Tais belezas influenciaram seriamente a vida pública são-joanense" (Autos, v. 3, 1981, p. 353).

José da Silveira e Souza - segundo referências de Tarquínio J. B de Oliveira -, nascido em Portugal, veio residir na Vila de São João del-Rei por volta de 1750, onde se estabeleceu com banca de advogado, em que militou até 1757, quando se transferiu para Goiás. Em 1758 casou-se com Maria Josefa da Cunha Bueno, descendente de tradicional família paulista e filha do capitão-mor de Goiás, José Teixeira Chaves. Maria Josefa era bisneta de Amador Bueno da Veiga. um dos comandantes paulistas no cerco do Arraial Novo, episódio da Guerra dos Emboabas (1709).

Pela mesma fonte tem-se conhecimento de que viveram em Goiás até 1762, quando regressaram á Vila de São João del-Rei. Nesta altura pairam dúvidas sobre a naturalidade são-joanense de Bárbara Eliodora. Se o casal residiu em Goiás de 1758 a 1762, como se explica que as duas primeiras filhas pudessem ter nascido em São João del-Rei, distante centenas de léguas? Segundo o consciencioso e meticuloso pesquisador são-joanense Luís de Meio Alvarenga não foram encontrados, nos arquivos, registros de Bárbara Eliodora, Francisca Maria, Ana Fortunata e Inácio José, os quatro primeiros filhos do casal. Tarquínio

J.B. de Oliveira ousou mesmo afirmar, ao abordar o assunto: "Igualmente é quase certo que os primeiros filhos lá [Goiás] nasceram: Bárbara Eliodora, nascida em 1759, Francisca Maria do Carmo, nascida em 1761, e Ana Fortunata, nascida em 1762" (Autos, v. 3, 1981, p. 352). Continua o texto relatando que os demais filhos nasceram em São João del-Rei.

Não nos cabe aqui, e nem é nossa intenção, confirmar ou negar o conteúdo dessas deduções, mas simplesmente levar ao conhecimento de um público maior um texto quase ignorado, diluído em nota de pé de página, para que possa ser analisado e debatido, isento de paixão e, principalmente, do ufanismo que geralmente deturpa a verdade. E necessário que se leve em conta que, na certidão de seu casamento, ocorrido em 22 de dezembro de 1781, consta a afirmação: "Natural e batizada [Eliodora] na Matriz desta Vila [São João del-Rei]." É um documento de validade relativa, considerando-se que em tais situações é comum (por negligência, esquecimento, vaidade ou outros interesses pessoais) que nem sempre se revele a verdade, principalmente sobre ocorrências de um passado mais remoto. Fica a questão, a ser esclarecida por futuros pesquisadores.

Desde 1778 Alvarenga Peixoto passou a viver maritalmente com Bárbara Eliodora, nascendo em  1779 a primeira filha, Maria Efigênia - situação que provavelmente escandalizou a comunidade e principalmente as autoridades religiosas. Na época em que se desenrolaram esses fatos era vigário da paróquia de N. S. do Pilar o padre Dr. Antônio Caetano de Almeida Vilas Boas da Gama, que não mantinha bom relacionamento com Alvarenga desde os tempos em que ambos estudavam na Europa.

Alvarenga foi substituído na ouvidoria por Luís Ferreira de Araújo e Azevedo, em 1780. Segundo informa ainda Tarquínio J. B. de Oliveira, ambos "mantiveram acesa guerra em São João del-Rei" com o vigário Vilas Boas. Essa pendência culminou com o extermínio (banimento) do vigário para quarenta léguas distante da vila. Em 1783 tem-se notícia do padre no Rio de Janeiro, onde cumpria a pena, com uma representação a Lisboa, explicando outro desentendimento havido, desta vez, com a Irmandade do Rosário.

Em 1781 o Bispo D. Frei Domingos da Encarnação se deslocou para São João del-Rei em visita pastoral. Vinha apascentar e disciplinar seu indócil rebanho. Um dos atos do prelado deve ter explodido como bomba: uma portaria intimando Alvarenga Peixoto a casar-se com Bárbara Eliodora. O casamento foi considerado de urgência e dispensadas as formalidades de praxe. Discretamente realizado na capela particular da casa do sogro (22 de dezembro de 1781), foi oficiado pelo padre Toledo, vigário da Vila de São José e íntimo amigo de Alvarenga. Um pormenor é que o casal sofreu o "castigo" (que pelo menos lhe foi imposto) de não coabitar durante quinze dias.

Maria Efigênia, a primogênita, já contava dois anos quando do casamento dos pais. Os outros três filhos vieram bem mais tarde: José Eleutério, 1787, João Damasceno (que posteriormente mudou seu nome para João Evangelista), 1788, e Tristão, 1789. Maria Efigênia faleceu aos quinze anos, de acidente (queda de cavalo) em São Gonçalo, onde a família passara a residir.

Em 1785 Alvarenga Peixoto foi nomeado pelo governador da capitania para o posto de coronel comandante do l.o Regimento de Cavalaria Auxiliar da Campanha do Rio Verde. É importante observar que as patentes para os postos das Tropas Auxiliares eram. na maior parte, praticamente honoríficas e de conveniência, tanto para o governo que ganhava apoio e simpatia dos beneficiados, como para estes, que sentiam-se lisonjeados e engrandecidos perante a comunidade e envaidecidos pelos galões e vistosas fardas, que os distinguiam dos mais humildes, do povo em geral.

Essas unidades, que mais modernamente poderiam ser classificadas como paramilitares, apesar de oficiais, não exerciam funções significativas na área militar. Seus oficiais eram geralmente homens de recursos financeiros e posição social mais elevada: fazendeiros, proprietários de minas ou mesmo profissionais liberais de destaque. Abundavam os alferes, tenentes, capitães, sargentos-mores e coronéis. Na verdade oficiais sem tropa, sem armas e conseqüentemente sem poder bélico. Um exemplo está na própria Inconfidência Mineira que para citar apenas a Comarca do Rio das Mortes, contava entre os seus principais conjurados, além do coronel Alvarenga Peixoto, os coronéis Francisco Antônio de Oliveira Lopes e José Aires Gomes e o sargento-mor Luís Vaz de Toledo Piza, do Regimento de Cavalaria Auxiliar da Comarca do Rio das Mortes; e os capitães João Dias da Mota e José de Resende Costa, ambos do Regimento de Cavalaria Auxiliar da Vila de São José. Como se vê eram muitos os comandantes para poucos comandados.

Em outubro de 1788, na residência do padre Toledo, Vila de São José, aconteceu uma grande festa em razão do batizado de João Damasceno, sendo padrinho Tomás Gonzaga, com muitos convidados das duas vilas del-Rei. Música, vinho farto, euforia exagerada, frases comprometedoras: que o padre Toledo seria bispo, Bárbara Eliodora, rainha e que Toledo Piza cortaria com seu fagote a cabeça do general - fanfarronadas descabidas e inoportunas que escandalizaram a vila e naturalmente despertaram a atenção das autoridades. Se não foi uma reunião formal, tal acontecimento ficou assinalado como início do processo conspiratório.

A atuação de Alvarenga Peixoto na Inconfidência Mineira foi bastante intensa, se considerados os repetidos encontros e conciliábulos de determinados grupos de líderes, dos quais era um dos principais, que conspiravam especialmente em Vila Rica e na Vila de São José, quando foram discutidos os aspectos político-administrativos do novo estado que sonhavam estabelecer nestas Minas Gerais. Nesses debates perdiam-se, muitas vezes, em emaranhados de detalhes de somenos importância e se esqueciam do fundamental, que seriam as condições e recursos materiais: homens de fato dispostos à luta armada, armamentos e munições (comportamento esse que não se alheava da maioria dos demais envolvidos, mesmo em outras áreas). Alvarenga alardeou, em oportunidades diversas, que arregimentaria 200, 400 e até mesmo 600 homens prontos para a luta e os traria de Campanha, onde possuía numerosa escravaria e prestígio. Mas, pelo que se sabe, ninguém de lá veio.

O destaque alcançado por Alvarenga na Inconfidência deveu-se antes à sua condição de intelectual, sua posição social e sua fortuna (apesar de infindáveis e constantes apertos financeiros), pois sua ação como revolucionário foi tíbia, marcada por indecisões. Com a suspensão da derrama, golpe de mestre do Visconde de Barbacena, Alvarenga sentiu-se perdido e, apavorado, arquitetou sua defesa, atitude muito humana e compreensível se fosse calcada na ética, sem macular os próprios brios. O que não aconteceu, pois, servindo-se de seus inegáveis dotes de poeta, em pânico e procurando entrar em graças com as autoridades, redigiu uma ode laudatória ao governador da capitania, o Visconde de Barbacena, numa atitude dúbia e nada varonil. Preso na Vila de São João del-Rei, em 24 de maio de 1789, entregou às autoridades a chave de uma caixa em que guardava seus papéis, entre estes a referida ode e um bilhete altamente comprometedor do amigo e comparsa padre Toledo, que poderia e deveria ter sido destruído.

Encarcerado, já na primeira inquirição, além de nada ocultar, procurou inocentar-se, ao mesmo tempo em que comprometia vários companheiros - atitude, aliás, que não foi somente sua mas da maioria dos inconfidentes. Ainda na tentativa de ganhar a benevolência do poder para minorar sua culpa, usou da poesia "[..] para merecer a piedade de Sua Majestade, que humildemente implora e que já rende graças na forma seguinte". Segue-se um soneto em que no terceto final o poeta rasteja aos pés da soberana (Autos, v. 7, 1978, p. 154):

Bendita sejas Lusitana Augusta,
Cobre o mar, cobre a terra um céu sereno
Graças a ti, oh Grande, oh Sábia, oh Justa.

Considerado um dos principais réus, Alvarenga foi condenado á pena de morte, comutada para degredo perpétuo na África. Levado para a região de Ambaca, em Angola, onde chegou em agosto de 1792, faleceu poucos dias depois, vitima de uma febre maligna.

Em outubro de 1793, com o inventário das propriedades, teve início o processo de seqüestro dos bens do casal, começando pela casa de morada de Bárbara Eliodora, no Arraial de São Gonçalo da Campanha. Relacionados os imóveis, semoventes e móveis lá existentes, foi a vez da Fazenda da Paraopeba. Pela ausência de referência, conclui-se que Alvarenga não possuía nenhuma propriedade na Vila de São João del-Rei.

Com a proteção do ouvidor da Comarca do Rio das Mortes, Luís Ferreira de Araújo e Azevedo, amigo íntimo de Alvarenga, a aquiescência do Visconde de Barbacena e, principalmente, com o apoio do influente compadre João Rodrigues de Macedo, Bárbara Eliodora não teve dificuldades em livrar do seqüestro metade dos bens do casal. A outra metade, conforme relata Tarquínio J. B. de Oliveira, foi posteriormente arrematada por Rodrigues de Macedo e reincorporada ao patrimônio da família. Bárbara Eliodora e seus filhos não ficaram na miséria, como mais tarde se fez crer. Orientada e assistida por Macedo, Eliodora ficou à frente das atividades de suas propriedades, pelo menos até sua interdição (em razão de suposta insanidade mental), ocorrida em 1812. Continuou residindo em São Gonçalo até sua morte, no ano de 1819.

Há em várias narrativas sobre a Inconfidência Mineira um pretenso fato (assim o qualificamos pela falta de elementos comprobatórios) relacionado com Alvarenga Peixoto e Bárbara Eliodora. Trata-se da atitude enérgica que esta teria tido, ao impedir Alvarenga, desesperado e acovardado com a iminência da prisão, de consumar sua intenção de trair os companheiros. Parece que tudo foi calcado nas Notas de Frei Raimundo da Anunciação Penaforte, um dos sacerdotes encarregados de dar assistência espiritual aos condenados durante a leitura das sentenças, que, ao referir-se a Alvarenga Peixoto, registrou:

Representou Alvarenga, cuja alma era mais pensadora e sua imagem mais viva, estar inteiramente transportado. Rompeu em vozes e raciocínios tão extravagantes, que o religioso que a sorte lhe deparou, dos onze, o acordou repetidas vezes do transporte horroroso a que se tinha entregado. Já recriminava a sua esposa, por lhe ter impedido os primeiros vôos (e talvez os últimos) de sua fidelidade (Autos, v. 9, l978, p. 181).

Este é o único registro conhecido que se pode associar à ação de Bárbara Eliodora evitando que o marido se tornasse um traidor, muito embora retratasse um momento de angústia e desvario de Alvarenga. A partir daí, os garimpeiros de heróis colocaram em sua boca dezenas de frases pomposas e dramáticas: Prefiro a morte, a viuvez, os filhos órfãos, mas quero o seu nome limpo e honrado. Quero vê-lo como herói e não traidor. Ou: Que horror! Tu delator? A denúncia nunca. Caiam sobre nós todos os castigos do crime por haveres trabalhado pela liberdade da Pátria. Arruinem-se nossa casa e nossa família, mas não comprometas nunca teus companheiros que se bateram, como tu, por uma causa justa e santa. Ou ainda: Por Deus, Alvarenga, poupa a tua família  a nódoa da delação! Afirmações encontradas facilmente em compêndios e livros sobre a história do Brasil e de Minas Gerais - ou mesmo em artigos publicados em jornais e revistas, inclusive de São João del-Rei. Nenhuma, porém, com lastro em qualquer tipo de prova documental.

É lamentável constatar que com tais referências se tente freqüentemente construir a História, transmitindo-a às novas gerações, usualmente pouco atentas e sem malícia. Sem dúvida, unia narração baseada nos fatos raramente tem os mesmos atrativos e a mesma facilidade de assimilação da história romanceada ou da lenda.

As duas figuras femininas classificadas por muitos como as heroínas da Inconfidência - Bárbara Eliodora e Marília de Dirceu - não tiveram, em oportunidade alguma, atuação efetiva na conjuração. Foram, isto sim, vítimas. A única mulher que de fato participou desses acontecimentos, se bem que discretamente, foi Hipólita Jacinta Teixeira de Melo, esposa do inconfidente coronel Francisco Antônio de Oliveira Lopes, proprietário da Fazenda da Ponta do Morro. Personagem até hoje pouco conhecida, mesmo pelos seus conterrâneos do antigo Arraial de Prados. É de justiça que seu nome seja lembrado, se não como heroína, o que seria um exagero, pelo menos como participante ativa.
 

GUIMARÃES, Geraldo. São João del-Rei - Século XVIII - História sumária.
     1996, págs. 117,118,119,120,122,123,124.



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